domingo, 7 de dezembro de 2008

VII

Na época, em que a minha mãe descobriu o câncer, eu já estava decidida que encontraria um emprego. Havia pedido um encontro com o presidente da empresa onde trabalho até hoje.
A reunião foi agendada para 11 de junho, data que eu completava 40 anos e, justamente, o dia que foi marcada a primeira quimioterapia da minha mãe.
Na hora marcada, nos dirigimos ao consultório do oncologista, em Ipanema, onde o procedimento seria feito, combinamos que, depois, pegaríamos um táxi, para que eu pudesse chegar à reunião, marcada para às 17h30.
Às 17h00, mamãe ainda aguardava o início da sessão quimioterápica e queria que eu fosse para o tal encontro. Foi um momento duro.
Eu trabalhava por conta própria há 10 anos. Nos últimos tempos as coisas estavam difíceis, economicamente, para nós. Aquela possibilidade, de trabalho certo, havia caído do céu.
Mas resolvi ligar, avisar à secretária que eu não poderia chegar na hora marcada, que seria melhor agendar outro dia.
O telefone tocou, do outro lado, ela me tranqüilizou dizendo que eu poderia ir com calma, pois a reunião das 18h30 havia sido desmarcada, o presidente me atenderia nesse horário.
A alegria de ter feito a melhor opção me invadiu a alma.

VI

Minha mãe me deu a luz duas vezes. Na segunda, eu nasci para a vida espiritual.
Isso aconteceu quando eu já tinha algum conhecimento da doutrina dos espíritos, freqüentava habitualmente uma casa de estudos e passes, mas ainda vivia em torno dos meus próprios problemas.
Filhos pequenos, um adolescente com sérios problemas, instabilidade financeira eram alguns dos ingredientes do meu cardápio diário.
O ano era o de 1996. Naquela ocasião, o trabalho estava escasso, as perspectivas profissionais pouco atraentes, o que mais me ocupava eram os estudos da casa espírita e a tarefa assistencial que iniciara. Estávamos – as crianças, meu marido e eu – morando em casa de minha sogra . Agradecida por ter um teto, apesar de todas as dificuldades, me motivara a participar de um trabalho com população de rua.
O quadro geral era esse, quando tive a notícia que minha mãe estava com câncer.
Até aí, a ficha ainda não tinha caído totalmente. Só acordamos quando, após a operação, recebemos a informação que o útero não poderia ser removido.
Essa situação, só aqueles que passaram por ela podem compreender – é indescritível. Por isso, ficamos meio avoados, sem entender nada.
Naquele momento, tive que crescer, não podia mais estar, ali, a filha preocupada e nervosa, tinha que estar alguém que pudesse conduzir aquela situação, de forma firme e serena.
O instante da dor teve que ser substituído pela ação tranqüila e tranqüilizadora, mas aonde eu recorreria para encontrar essa força que eu precisava?
Foi quando eu percebi a verdade. Só, dentro de mim mesma, eu poderia buscar forças. A coragem viria da Fé. O mais lindo nisso tudo é que eu descobri que tinha essa Fé. Foi com ela que eu pude caminhar, nos longos meses que tivemos que atravessar - todos juntos.

*****

Durante o período que a minha mãe esteve em tratamento nos aproximamos muito. Passei a ter com ela a preocupação que nunca havia tido. A família toda se uniu mais, amadureceu junto.
Tivemos muita ajuda, de toda a parte, inclusive, e principalmente, a espiritual. Uma situação interessante, de se comentar, que apesar de católica, praticante, ela teve abertura, suficiente, para se submeter a uma cirurgia espiritual. O médico, que a operou espiritualmente, viveu aqui na terra, exercendo a homeopatia, seu nome é rua, no bairro do Méier: Dr. Aristides Caire.
Nessas horas, muitas informações chegam, de toda a parte, a gente precisa estar sintonizado com o mundo maior, para que as ajudas sejam captadas. Um dos auxílios que ela recebeu foi um tratamento fitoterápico, realizado pelo Laboratório de Ervas Medicinais, da Universidade de Piracicaba. O Prof. Walter Accorse, que já não está mais entre nós, era o responsável pelo tratamento e sua filha quem atendia o público, enviava os remédios pelo correio, continua até hoje essa tarefa.
Essa terapia foi fundamental para que ela pudesse suportar a violência da quimioterapia e mantivesse o sistema imunológico ativo.
Era uma profusão de remédios, o Aveloz, como o carro chefe, uma planta considerada venenosa, mas que tratada, na dosagem certa, tem atuação significativa no combate ao câncer. Lembro-me, ainda, de alguns nomes como: o óleo de copaíba, o ipê roxo, o confrei, unha de gato. Meu pai preparava aquilo tudo, de forma organizadíssima, para que nenhum deles ficasse esquecido, ou o horário fosse perdido. O relógio de pulso tinha um despertador, para avisá-la durante o período que ela estava no trabalho.
Outra parte, que acredito ter sido importante para a sua recuperação, foi não parar as atividades. Como diz o ditado popular: “cabeça parada é oficina do diabo”.
Antes de iniciar a primeira quimioterapia ela já havia escolhido uma peruca, igualzinha ao cabelo natural , para que os alunos não estranhassem.
Foi uma preparação, interna e externa, para a nova realidade com a qual ela teria que conviver, sem ter a menor idéia por quanto tempo.
Seu processo de tratamento foi uma terapia coletiva, da qual muitos participaram ativamente. Não só a família e os amigos, mas os alunos, professores, funcionários acompanharam de perto, dando muita força, mas aprendendo também.
Nessa época eu já tinha começado a trabalhar na tarefa de passes do Centro Espírita e pedi para participar do trabalho de visita aos doentes no Hospital Miguel Couto. A ocupação com outras pessoas que tinham problemas foi muito importante para que eu pudesse lidar com os meus próprios problemas. Como um bálsamo que aliviava a minha alma, fortalecendo os sentimentos, criando novos recursos para lidar com as dores e os sofrimentos.

V Curiosa Coincidência

O dia era 31 de março. O ano de 1995.
Havia chegado de Lyon, onde estive, com José Lewgoy, apresentando o filme Carnaval Atlântida, num evento comemorativo do centenário do cinema, que fora organizado por um cineclube local. Em Lyon nascera Lumière, o criador do cinematógrafo, lá, tivemos a oportunidade de conhecer sua casa, transformada num pequeno museu do cinema.
Antes de voltar ao Brasil, Lewgoy aproveitou para ir a Portugal fazer a dublagem de seu personagem no filme O Judeu. Quanto a mim, fui a Paris, passar os dias que ainda me restavam para a volta.
Visitando uma amiga, vi pela televisão uma enorme romaria que acontecia no cemitério Père Le Chaise. Ficamos sabendo que eram pessoas homenageando Alain Kardec no aniversário de sua morte. Comentei que eu estava freqüentando um Centro Espírita, e achando bem interessante. Entusiasmada com a revelação, ela ligou, na mesma hora, para um amigo que trabalhava num canal de televisão, que havia realizado, no Brasil, um programa sobre o espiritismo. De repente, o tal fulano apareceu, de moto, todo animado, queria me levar ao túmulo de Kardec. Achei que, àquela altura, estava um pouco tarde, declinei do convite.
Ele me deixou uma fita vhs, do tal programa de tv, com a idéia de eu que pudesse intermediar a sua exibição no Brasil.
Voltei com a tarefa e a fita debaixo braço.
O que eu ainda não sabia, e só fui descobrir ao voltar para o Brasil, era o fato de Alan Kardec também ter nascido em Lyon.
Essa coincidência ainda iria dar panos para manga.



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Na volta ao Brasil, comecei a estudar o Livro dos Espíritos, no Grupo do Centro Espírita que eu freqüentava.
Andava por toda a parte com a tal fita que eu trouxe Paris, tentava, sem sucesso, que alguém se interessasse pelo programa. O pessoal do Centro não dava a menor bola, até que um dia, lanchando na Padaria Rio Lisboa, encontrei com João Carlos Cunha, um dos melhores palestrantes do Centro. Fui logo contando a história, e ele, com o seu jeito cativante, disse que gostaria muito de ver a fita, mas que eu não deixasse de procurar o Gerson, na USEERJ¹.
Passado uma semana tivemos a triste notícia que João Carlos havia desencarnado.

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Estava eu novamente sozinha, com fita debaixo do braço. E assim fiquei, por mais de um ano.

Durante aquele ano de 1995, tivemos a visita assídua de um pesquisador de cinema, ao escritório onde trabalhávamos – meu marido e eu. Máximo Barro procurava material para o seu livro sobre um dos fundadores da Atlântida, Moacir Fenelon. Nas horas vagas, conversávamos amenidades, numa dessas ocasiões, falamos da tal fita, recebida em Paris, no dia do aniversário de morte do codificador do espiritismo. Eu confessei a ele que buscava entender o porquê de toda aquela história ter me acontecido. Afinal a instituição que nos levou a Lyon era um simples cineclube local, lá, nada de importante aconteceu na seara do cinema.
Ficamos sabendo, pelo Maximo, da existência de um renomado espírita que tinha sido um dos pioneiros do cinema. Àquela altura, já sabia da tal coincidência, do nascimento de Kardec e Lumière na mesma cidade, comecei a achar que tudo aquilo tinha uma forte ligação, que eu deveria descobrir o que fazer com Cinema e Espiritismo.
Máximo Barro me presenteou com uma biografia de Frederico Figner.

IV O Condutor

Já havia algum tempo que eu freqüentava o Centro Espírita do Leblon e ainda não conhecia o trabalho assistencial que era realizado na Comunidade da Rocinha.
Ali se promovia reuniões públicas para a comunidade, a partir das 8:00h da manhã de sábado, havia tarefa para todos os gostos, mas eu ainda relutava em assumir essa responsabilidade. Afinal, acordar cedo nunca foi o meu forte...
Naquela sexta-feira, não pude mais escapar.
Durante os trabalhos mediúnicos, dos quais eu participava, uma música muito intensa e ritmada penetrava meus sentidos. Era um grupo de africanos que cantavam um ponto anunciando : “O Povo de Angola voltou”. Estranhei bastante, pois o nosso Centro não era de Umbanda e eu nunca tive hábito de ouvir nada.
Fui para casa curiosa com o acontecido, mas acabei esquecendo e pegando no sono.
Mas o som não quis me deixar, o ponto me acompanhou durante toda a noite, até que me levantei, sem possibilidade de conciliar mais o sono. Eram 6h00.
Sem pensar, me vesti toda e resolvi que faria uma visita à Rocinha. Tentei um táxi pelo telefone, procurando quem soubesse me levar. Nada!
Meia hora depois, desci à rua e fiz sinal para o primeiro motorista que apareceu. Ele me levou direto para a rua onde ficava a Escola Maria de Nazaré.
Achei aquilo incrível...
Nunca entendi direito o houve. Só sei que foi um dos momentos de maior felicidade da minha vida.
Desci e fui andando, calmamente, até o local. Estava tomada por uma profunda emoção.
Ao entrar na Escola parecia que todos me esperavam.

III Felicidade

Naquela noite, eu estava particularmente serena, nada me importunava. Fui assistir, como de hábito, a palestra, das quintas-feiras, no Centro Espírita que eu freqüentava, no bairro do Leblon.
O tema da noite versava sobre o nosso mundo de provas e expiações. O palestrante ressaltava que a verdadeira vida estava no mundo espiritual, que aqui tudo é transitório, inclusive a felicidade - sujeita às intempéries da vida material.
E, eu, que estava feliz e tranqüila, discordava intimamente daquela abordagem, para mim tão radical. Ao final da palestra, fui matutando o assunto, resmungando comigo mesma.
Caminhei, distraída, até a Praça Antero de Quental, para tomar meu ônibus no ponto final – naquela época eu morava no bairro de Botafogo.
Perdida em meus pensamentos, subi no 410, que ainda estava vazio. Subitamente, fui levada a sentar, por um cidadão, discreto e bem vestido.
Ainda surpresa, obedeci às suas ordens, sem me dar conta do que acontecia.
Ele, delicadamente, retirou o relógio de meu pulso, pegou o dinheiro da carteira, deixando a quantia da minha passagem.
Levantou-se, passou pela roleta pagando a passagem, desceu.
Nesse instante acordei de minha perplexidade.
Gritei para o motorista parar. Desci correndo atrás do fulano, mas...
Tarde demais.
Um gosto amargo e uma pontada no peito acusaram o meu desgosto.
Realmente, o palestrante tinha razão na impossibilidade da felicidade num mundo de provas e expiações.
Voltei cabisbaixa para o ponto de ônibus.
Até hoje me arrependo de ter usado o relógio que o meu filho ganhou de presente do padrinho.

Desfecho Inusitado

Estávamos na metade do longo caminho entre Copacabana e a Rodoviária. Quatro jovens, subitamente, se espalharam pelo ônibus e começaram a assaltar os passageiros.
Distraída, como de hábito, só percebi a jogada quando o jovem, olhando diretamente nos meus olhos, pedia a grana – meu marido já havia passado a dele.
No mesmo instante, falei :
- Preciso viajar! Não posso deixar de ir! Fiquei super nervosa, com medo de perder a viagem. Precisava levar o contrato de nosso aluguel que a minha mãe iria assinar.
- Estou Grávida ! - gritei com o rapaz que insistia em pegar a bolsa.
Nesse instante o jovem me deixou em paz e, surpreendentemente, devolveu o dinheiro que havia recolhido de meu marido.
Abruptamente, veio, por trás, outro assaltante e pegou de novo a bolsa pela alça, disse com um ar decidido:
- Passa já ! Senão eu lhe enfio a faca.
Olhei bem, em seus olhos negros – que até hoje não pude esquecer -, e respondi decidida:
- Pois enfie, que eu não vou dar !
A resistência fez a alça arrebentar.
Enquanto preparava a descida, na altura do bairro da Saúde, o primeiro rapaz, já na porta do ônibus, gritava: - deixe ela, que está grávida !
E, nesse instante, evaporam-se os quatro.
Haviam limpado os outros três passageiros que seguiam rumo a um culto em Caxias.
Meu marido me olhou terno, foi naquele instante que soube da minha gravidez, e olha que o bebê já estava nos protegendo.
Felizes com o desfecho da história distribuímos pelos três outros passageiros o dinheiro devolvido e, aliviados, seguimos para Teresópolis.